Fazenda com escravidão e assassinatos pode ter despejo de sem-terra no Pará

Audiência judicial pode autorizar despejo de centenas de famílias que vivem na Fazenda Mutamba, em Marabá, onde dois trabalhadores foram executados por policiais em outubro. A área é marcada por conflitos, trabalho escravo e suspeita de grilagem
Por Daniel Camargos
 05/06/2025

UMA AUDIÊNCIA nesta sexta-feira (6) no Fórum de Marabá (PA) pode determinar o despejo de cerca de 400 famílias que vivem no Complexo Mutamba, uma área de 12 mil hectares no sudeste do Pará. A decisão ocorre menos de oito meses após uma operação da Polícia Civil na área terminar com dois trabalhadores rurais mortos e vários feridos e prender quatro pessoas, que relataram terem sido torturadas.

As famílias ocupam o local desde 2003, organizadas pelas associações Terra Prometida, Bom Futuro e Cigana-Balão III e IV. Alegam que a área estava abandonada e foi recuperada para produção de alimentos. A maioria vive em barracos de madeira e palha e cultiva lavouras para subsistência. “Tem mandioca, milho, feijão, acerola. De tudo um pouco”, diz a moradora Maria Santos.

Ela conta que os acampados vivem sob tensão. “Tem drone sobrevoando direto. Não podemos nem tomar banho que o drone fica vigiando”, relata. Segundo ela, a pressão aumentou desde a operação policial de outubro, e a expectativa para a audiência é de medo e insegurança, caso o despejo seja confirmado.

A Fazenda Mutamba é registrada em nome da família Mutran, um dos clãs mais influentes da pecuária no Pará. Com grandes propriedades e histórico de conflitos fundiários na região, a família é frequentemente citada por organizações sociais como símbolo da concentração fundiária no estado.

A Defensoria Pública do Estado alega no processo judicial que parte da área da fazenda pode se sobrepor a terras públicas. Movimentos sociais acionaram a superintendência regional do Incra (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária) em Marabá, pedindo vistoria urgente e medidas para desapropriação do imóvel.

O advogado Adebral Favacho, que representa parte dos acampados, espera que o juiz determine a suspensão do despejo. “É preciso evitar que 400 famílias sejam jogadas na rua sem local para plantarem para subsistência”, afirma.   

Velório de um dos trabalhadores mortos na operação policial de outubro. Trabalhadores afirmam que policiais chegaram ao acampamento de madrugada e atirando. Já a Polícia Civil do Pará diz que grupo estaria armado (Foto: Arquivo pessoal)
Velório de um dos trabalhadores mortos na operação policial de outubro. Trabalhadores afirmam que policiais chegaram ao acampamento de madrugada e atirando. Já a Polícia Civil do Pará diz que grupo estaria armado (Foto: Arquivo pessoal)

Decisão judicial priorizou o gado aos sem-terra

A audiência de sexta foi convocada para preparar o cumprimento provisório da reintegração de posse, determinada em sentença da Vara Agrária de Marabá em abril de 2024. O processo judicial tramita desde 2017.

A Defensoria e os réus recorreram, mas o juiz autorizou a desocupação com base em risco para o rebanho da fazenda. A parte autora afirma que há 7 mil bois impedidos de ar áreas com pastagem. Os fazendeiros também pedem indenização por danos materiais e morais.

O Incra foi consultado pela Justiça sobre possibilidade de compra da área, mas os proprietários informaram que não têm interesse em vender. Procurado pela Repórter Brasil, o órgão disse que a falta de interesse da família Mutran impossibilita a compra. Afirmou ainda que avalia se o imóvel atende às condições exigidas para desapropriação. 

Sobre a audiência, o Incra informou que pediu para ingressar na ação como amicus curiae para “apresentar informações que possam contribuir para solução do conflito”. 

A reportagem entrou em contato com a advogada Marli Fronchetti, que representa a família Mutran, mas ela não respondeu às questões enviadas. O espaço segue aberto.

ASSINE NOSSA NEWSLETTER

O caso ganhou repercussão nacional em 11 de outubro de 2024, quando uma operação da DECA (Delegacia Especializada em Conflitos Agrários) resultou na morte de dois trabalhadores: Adão Rodrigues de Souza, de 53 anos, casado e pai de cinco filhos, e Édson Silva e Silva. Segundo testemunhas, os policiais invadiram o barracão às 4h da manhã, gritando “perdeu, perdeu” e atirando contra pessoas que dormiam.

Quatro trabalhadores foram presos. Eles relataram ter sido levados até os corpos dos companheiros mortos, espancados, ameaçados com faca e agredidos com chutes, socos e pancadas na cabeça. Um sofreu um tiro de raspão. Nenhum dos mortos tinha antecedentes criminais. Apesar de a Polícia Civil do Pará alegar que o grupo estava “ostensivamente armado”, a operação apreendeu apenas sete espingardas antigas e celulares. Nenhum policial se feriu.

O delegado Antônio Mororó, responsável pela ação, negou as acusações em entrevista para a Repórter Brasil e afirmou que houve confronto, classificando os relatos como “levianos”. Um mês após a operação, ele foi transferido da Deca para outra delegacia. O Ministério Público do Pará abriu investigação para apurar os fatos. A Defensoria Pública e os advogados das famílias dizem que a operação foi desproporcional e violou direitos humanos.

Agentes policiais realizaram a operação ainda na madrugada de sexta-feira, segundo os trabalhadores rurais; Corporação alega que grupo está envolvido com uma série de crimes (Foto: Divulgação/Polícia Civil Pará)
Agentes policiais realizaram a operação ainda na madrugada de sexta-feira, segundo os trabalhadores rurais; Corporação alega que grupo está envolvido com uma série de crimes (Foto: Divulgação/Polícia Civil Pará)

Histórico de trabalho escravo em fazendas da família

A disputa envolve três imóveis: Fazenda Mutamba, Fazenda Balão e Castanhal João Lobo. Relatórios do Iterpa (Instituto de Terras do Pará) apontam que parte da área, especialmente a João Lobo, se sobrepõe a uma terra pública que teria sido incorporada irregularmente ao domínio privado.

A Defensoria argumenta que o espólio age como mero detentor e que não cabe proteção possessória sobre área pública. Cita jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça que veda reintegração em tais casos e pede perícia fundiária para esclarecer os limites e a titularidade da área. O pedido ainda não foi acolhido.

O histórico da família Mutran é um ponto central na argumentação pela destinação da Fazenda Mutamba à reforma agrária. Em 2002, 25 trabalhadores foram resgatados da fazenda em condições análogas à escravidão. 

Outras propriedades da família também foram denunciadas por violações trabalhistas. A família chegou a ter três fazendas incluídas nas Listas Sujas do trabalho escravo divulgadas pelo governo federal em 2003 e 2004.

A empresa Jorge Mutran Exportação e Importação, ligada à família, foi autuada mais de uma vez por manter trabalhadores em condições degradantes na Fazenda Cabaceiras. Em 2004, foi condenada a pagar R$ 1,3 milhão por dano moral coletivo ao Fundo de Amparo ao Trabalhador, a maior indenização por trabalho escravo no país até aquele momento. 

Na mesma fazenda,13 pessoas foram resgatadas em fevereiro de 2002 e outras 22 em agosto do mesmo ano.

Após sucessivas autuações, a propriedade foi desapropriada e transformada no assentamento 26 de Março. Na Fazenda Peruano, também ligada à família, outras 54 pessoas foram libertadas em 2001.

Nas décadas de 1950 e 1960, florestas e castanhais do sudeste do Pará foram concedidas como aforamento com a condição de exploração da castanha e preservação ambiental para os Mutran. 

Contudo, com a transição para a pecuária, houve desmatamento e destruição da floresta, o que, para a Defensoria Pública, configura quebra de contrato, devendo as terras serem revertidas ao domínio público.

Leia também

APOIE

A REPÓRTER BRASIL

Sua contribuição permite que a gente continue revelando o que muita gente faz de tudo para esconder

LEIA TAMBÉM

Quatro trabalhadores rurais foram presos; eles alegam terem sido torturados pelos policiais (Foto: Divulgação/Polícia Civil do Pará)
Assine nossa newsletter!

Receba o conteúdo da Repórter Brasil direto na sua caixa de email.
Assine nossa newsletter.