AS DUAS MAIORES redes de supermercados brasileiras, Carrefour e Assaí, notificaram os laticínios Tirol e Comevap (Cooperativa de Laticínios do Médio Vale do Paraíba) após flagrantes de trabalho análogo ao de escravo em fazendas de gado leiteiro. As duas gigantes do varejo são signatárias do Pacto Nacional pela Erradicação do Trabalho Escravo. Ao serem perguntadas sobre a manutenção dos fornecedores pela Repórter Brasil após os flagrantes da fiscalização trabalhista, as duas redes afirmaram na última sexta (30) ter notificado seus fornecedores.
Um dos casos ocorreu em São José dos Campos (SP) em 2020, na Fazenda do Juca Tatu, de Luiz Olimpio Pereira Maciel, que forneceu leite para a Comevap. De acordo com a fiscalização, o trabalhador atuava no local desde 1999 e estava sem receber salário.
O trabalhador de 61 anos vivia com sua mãe em uma casa na fazenda e trabalhava todos os dias sem descanso, segundo o relatório de fiscalização. Ele teria afirmado aos auditores do Trabalho que deixou de receber salário quando o antigo dono morreu em 2005 e que recebia doações de vizinhos para sobreviver.
Ainda de acordo com os auditores, o resgatado trabalhava em jornada exaustiva e sem registro. O telhado da casa onde morava estava quebrado e as camas estavam cobertas com lonas para evitar a chuva. A chaminé do fogão à lenha estava obstruída e a residência ficava toda tomada por fuligem após o preparo dos alimentos. A água vinha de uma mina, sem ar por nenhum tratamento. “O trabalho exaustivo fazia com que o obreiro não tivesse lazer ou qualquer vida social. Ele vivia para o trabalho”, descreve o relatório de fiscalização.
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O dono da fazenda chegou a ser preso em 2020 e solto posteriormente. Segundo o relatório, ele disse na época que daria ao trabalhador a posse da casa onde a vítima morava, em troca dos serviços prestados. Em 2023, Maciel foi condenado em primeira instância pelo crime de submeter pessoa à condição análoga à de escravo. A pena de dois anos de reclusão, em regime aberto, foi substituída por prestação de serviço comunitário e multa. O processo aguarda julgamento em segunda instância. O caso entrou na Lista Suja do trabalho escravo em abril de 2025. Ele firmou um TAC (Termo de Ajustamento de Conduta) para pagamento das verbas rescisórias.
A Comevap confirmou em nota à Repórter Brasil que mantinha relação comercial com o proprietário da fazenda. Disse que “não tinha conhecimento da autuação” e que, ao se certificar da “condenação” do fornecedor, pretende “tomar as providências cabíveis”. A cooperativa também declarou: “Repudiamos qualquer prática que envolva trabalho escravo, em qualquer uma de suas formas”. Leia o posicionamento completo aqui.
Com sede em Taubaté (SP), no Vale do Paraíba, a Comevap diz receber 160 mil litros de leite por dia. A entidade fornece leite, manteiga, queijos e outros derivados para supermercados e indústrias da região. Fornece seus produtos para grandes redes varejistas como Carrefour e Assaí.

Varejistas pediram esclarecimentos aos fornecedores
O Grupo Carrefour Brasil afirmou ter “notificado seus fornecedores” e “solicitado esclarecimentos e medidas corretivas” após tomar conhecimento do caso. Em nota, reafirmou “compromisso com os direitos humanos e a legislação trabalhista em sua operação e cadeia de valor, estabelecendo em contrato o compromisso do fornecedor em monitorar o respeito aos direitos humanos e dos trabalhadores em sua cadeia produtiva vinculada.”
O Assaí Atacadista destacou que “acionou os fornecedores para esclarecimentos”. A empresa afirmou também que “não aceita a existência de condições análogas ao trabalho escravo” e que “trabalha com seus fornecedores para um processo contínuo de evolução.”
A rede Assaí também pontuou que os “CNPJs envolvidos não constam na Lista Suja”. O produtor de leite que vendeu a produção para a Comevap é quem foi incluído na lista, mas a cooperativa de laticínios – fornecedora direta da rede de supermercados – não consta do cadastro de empregadores flagrados pela fiscalização trabalhista. O Pacto pela Erradicação do Trabalho Escravo tem como um de seus compromissos a promoção da regularização das relações de trabalho considerando a cadeia de valor.
Confira o posicionamento completo das varejistas aqui.
Após saber de flagrante, Tirol bloqueia fornecedor
O segundo caso que motivou a reação dos supermercados ocorreu em uma fazenda que forneceu leite para a Tirol. A empresa de laticínios também fornece seus produtos para Carrefour e Assaí. Um de seus fornecedores também foi alvo de fiscalização.
Em setembro de 2024, dois trabalhadores foram resgatados de situação análoga à escravidão na Fazenda São João, em Manoel Ribas (PR), propriedade de Osmair Marcelino. A informação consta do relatório de fiscalização do Ministério do Trabalho e Emprego e que foi confirmada pela empresa à Repórter Brasil. A Tirol afirmou ter bloqueado permanentemente a fazenda da lista de fornecedores após ser informada sobre o caso pela reportagem. E ressaltou o repúdio ao trabalho análogo à escravidão.
Um dos resgatados não recebia salário há pelo menos 20 anos, concluíram os auditores. O relatório de fiscalização aponta que ele sobreviveu com ajuda da família, que levava cestas básicas, colchões e outros itens essenciais. O trabalhador vivia em uma casa de madeira na fazenda e dormia no chão, sobre um colchonete velho. O piso tinha buracos, a fiação elétrica estava exposta e o telhado sem manutenção, aponta o relatório de fiscalização. A água para consumo era captada de um córrego por uma mangueira que ava ao lado de um cano de esgoto com vazamento.
O segundo trabalhador aplicava agrotóxicos e roçava o pasto, sem receber EPIs (Equipamentos de Proteção Individual).
A reportagem procurou os representantes legais dos dois fazendeiros mencionados. Nenhum deles respondeu até o fechamento desta matéria. O espaço segue disponível para futuras manifestações.
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