Anvisa libera revestimento de lata de bebida contestado por risco à saúde 

Agência reguladora liderou discussão no Mercosul para autorizar o uso do Bisfenol F no revestimento de embalagens de bebidas; pesquisas científicas citam riscos à saúde humana e até empresas do setor se manifestaram contra liberação do composto químico, barrado na União Europeia
Por Daniel Haidar | Edição Carlos Juliano Barros
 09/06/2025

NA CONTRAMÃO de estudos científicos e de críticas de empresas da própria indústria química, a Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) liberou em fevereiro deste ano o uso de uma substância associada a potenciais problemas de saúde, como disfunções hormonais, para o revestimento de embalagens de bebidas no Brasil. 

A decisão de autorizar o uso do Bisfenol F (BPF) na composição de “latinhas”, como as utilizadas para sucos, refrigerantes e água mineral, ocorreu após solicitação feita pela Valspar Corporation, do grupo americano Sherwin-Williams — conglomerado global do mercado de tintas, vernizes e revestimentos. 

O Bisfenol F é o sucessor do Bisfenol A, composto químico proibido em diversos países. O material é apontado como fator de risco para as funções metabólicas e hormonais do corpo humano. Desde 2012, uma resolução da Anvisa impede o uso de Bisfenol A em produtos infantis. Atualmente, tramitam no Congresso medidas para ampliar a proibição. 

Já o Bisfenol F surgiu como alternativa para driblar as restrições. A substância é aplicada principalmente na fabricação de resinas epóxi, amplamente utilizadas no revestimento interno de embalagens metálicas. O BPF teve o uso difundido por aumentar a vida útil de diferentes produtos, garantindo maior resistência térmica às embalagens.

Sede da Anvisa (Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil)
Anvisa liderou o processo de liberação do Bisfenol F no âmbito do Mercosul. (Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil)

Apesar de suas qualidades para revestimento, um relatório da OCDE (Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico) aponta que o BPF pode provocar impactos hormonais similares aos gerados pelo BPA. A União Europeia, por exemplo, não permite o uso de Bisfenol F em materiais destinados ao contato com alimentos, conforme o Regulamento (UE) nº 10/2011.

Pesquisadores ouvidos pela Repórter Brasil veem com preocupação a medida da Anvisa e afirmam que uma eventual aprovação deveria ser amparada por evidências científicas mais robustas. Pesquisas mostram que o Bisfenol F pode contribuir para problemas de saúde, como ganho de peso e surgimento de diabetes, além de prejuízos à placenta, inclusive com riscos ao neurodesenvolvimento de filhos em casos de gravidez. 

Em nota à Repórter Brasil, a Anvisa afirma que “as posições dos fabricantes contrários à aprovação foram consideradas durante o processo de consulta pública e diálogo setorial”. O posicionamento sustenta que “não foram apresentados estudos científicos que refutassem as evidências submetidas pela Sherwin-Williams”. Clique aqui para ler a íntegra da resposta.

Atas de reuniões obtidas com exclusividade pela Repórter Brasil, por meio da Lei de o à Informação (LAI), mostram que a Anvisa liderou, em conjunto com a Argentina, o processo de liberação do Bisfenol F no âmbito do Mercosul, a partir de setembro de 2022. 

A petição argentina cita que um pedido de liberação da substância também foi registrado no país vizinho e argumenta que o material teve seu uso permitido em embalagens na Holanda, em abril daquele ano. Nenhum estudo científico é citado ou anexado na ata. O processo foi concluído no Mercosul em dezembro do ano ado.

Procurada, a Sherwin-Williams não respondeu até o fechamento desta matéria. O texto será atualizado caso a empresa envie um posicionamento.

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Autorização poderia ter sido adiada ou feita de forma mais ‘cautelosa’, diz cientista

Antes de autorizar o uso, a legislação impõe que a Anvisa avalie estudos científicos sobre a interação de produtos químicos com diferentes tipos de alimentos e bebidas. As análises são feitas caso a caso e podem resultar em veto ou autorização específica para uma categoria. 

No caso do Bisfenol F, a Anvisa entendeu que o uso desse material no revestimento de embalagens de bebidas é seguro. Nos pareceres técnicos e nos votos dos diretores do órgão, no entanto, não foram apresentados estudos com os fundamentos dessa conclusão.

Pesquisadores alertam para a necessidade de estudos mais robustos sobre o impacto do Bisfenol F (Foto: Canva)
Pesquisadores alertam para a necessidade de estudos mais robustos sobre o impacto do Bisfenol F (Foto: Canva)

A decisão da Anvisa é criticada por fontes entrevistadas pela Repórter Brasil. Elize Musachio, pesquisadora da UFSM (Universidade Federal de Santa Maria), destaca que “a estrutura química do BPF é muito semelhante à do Bisfenol A (BPA)”, substância já reconhecida internacionalmente como desreguladora endócrina. 

A pesquisadora estuda o impacto do Bisfenol F e alerta para a necessidade de mais estudos sobre o material. Em testes com moscas, ela detectou estresse oxidativo (o que pode contribuir para o aparecimento de células cancerígenas), além de alterações reprodutivas e neurológicas. 

Elize também expressa preocupação com o baixo volume de dados toxicológicos sobre o BPF, e afirma que o uso da substância deveria ser avaliado com mais cautela pela agência reguladora. 

“É imperativo conhecer o status atual de exposição ao BPF em amostras representativas da população, incluindo crianças e adolescentes”, avalia a pesquisadora da UFSM. Em sua avaliação, “a liberação do Bisfenol F poderia ter sido postergada ou pensada de forma mais cautelosa diante da carência de estudos”.

Kênia Moreno, da Unicamp (Universidade Estadual de Campinas), também alerta para os riscos dos bisfenóis como desreguladores endócrinos. De acordo com a pesquisadora, as substâncias são capazes de “perturbar o funcionamento de hormônios, particularmente o estrogênio (que regula o ciclo menstrual)”. Ela destaca que o BPF, mesmo apresentando uma resistência térmica superior ao BPA, pode não ser seguro. 

“O que se sabe até o momento é que o Bisfenol F também possui ações estrogênicas. Já foi demonstrado que ele pode induzir aumento de inflamação em alguns modelos de roedores e a gente sabe que a inflamação está associada ao desenvolvimento de algumas doenças, como o  diabetes e o favorecimento do ganho de peso”, diz a pesquisadora da Unicamp. “Outro trabalho demonstra que pode estar associado ao aumento de células. E tem um trabalho muito interessante que demonstra que está associado a prejuízos na placenta”, acrescenta.

Em consulta pública da Anvisa, empresas foram contrárias à liberação do BPF

Antes de liberar o Bisfenol F, a Anvisa promoveu uma consulta pública, entre 29 de março e 13 de maio de 2024, para colher sugestões da indústria e da sociedade civil. Em manifestação enviada por escrito à agência, até mesmo representantes da indústria química criticaram a autorização do uso da substância. 

O representante da empresa norte-americana PPG, por exemplo, afirmou que existem numerosos estudos toxicológicos que levantam preocupações de segurança para os seres humanos e para o meio ambiente. “É nossa opinião que, embora existam questões relativas à segurança destes materiais, adicionar este material à lista positiva de substâncias em contato com alimentos não é apropriado neste momento”, diz o posicionamento enviado pela companhia

O porta-voz da holandesa AkzoNobel também se manifestou contra a inclusão do Bisfenol F na chamada “lista positiva” de materiais permitidos para contato com alimentos e bebidas. 

“Em razão de toda a discussão global acerca do uso e permissão do Bisfenol A e seus homólogos na Comunidade Europeia, em produtos que tenham contato com alimentos, a Akzo Nobel Ltda informa que não seria razoável incluir uma substância homóloga ao Bisfenol A na lista positiva”, informou o representante da holandesa na consulta pública. 

“A Akzo Nobel Ltda acredita que uma transição para longe dos bisfenóis é possível à medida que as tecnologias de revestimentos utilizadas avançaram a ponto de não haver mais necessidade de tecnologias à base de bisfenóis em embalagens metálicas de alimentos e bebidas”, acrescentou a empresa na manifestação enviada à Anvisa. 

Antes da liberação, a agência reguladora ainda realizou em agosto de 2024 um diálogo setorial, evento para ouvir novamente opiniões da sociedade civil e da indústria sobre propostas em discussão. 

Na ocasião, um representante da Sherwin-Williams, controladora da Valspar Corporation, empresa responsável pelo pedido de liberação do BPF, manifestou-se em videoconferência para defender o uso do material como alternativa segura ao BPA. 

Em contrapartida, representantes de empresas concorrentes, como PPG e Akzo Nobel, contestaram o posicionamento. Um representante da PPG disse que colocava à disposição da Anvisa estudos sobre o assunto. 

Na consulta pública promovida pela Anvisa, comentários de profissionais da saúde e cidadãos comuns também reforçaram a preocupação com a autorização do uso do Bisfenol F. 

Ainda assim, a Anvisa manteve sua decisão, sob a justificativa de “baixa expectativa de impacto” e de “convergência regulatória internacional”.

Anvisa liderou liberação do Bisfenol F no Mercosul

Em setembro de 2022, o Brasil apresentou formalmente ao Mercosul um pedido para a inclusão de novos produtos (como o Bisfenol F) na “lista positiva” do bloco econômico. A justificativa era a de que a relação estava “desatualizada”, o que “impedia a inovação tecnológica do setor e criava barreiras injustificadas ao comércio de embalagens”. 

Liderada pela Anvisa brasileira, a proposta foi debatida durante reuniões ordinárias do Sistema Globalmente Harmonizado de Classificação e Rotulagem de Produtos Químicos, Revisão 3 (SGT-3), do Mercosul, entre 2022 e 2023. 

Nas negociações com Argentina, Paraguai e Uruguai, o Brasil encabeçou a defesa da liberação do Bisfenol F, segundo atas de reuniões obtidas pela Repórter Brasil via Lei de o à Informação (LAI).

Depois da consulta pública e do diálogo setorial, a Anvisa ou a defender que a autorização se restringisse a latas de bebidas, proibindo o uso para embalagens de alimentos. A autorização da substância, no âmbito do Mercosul, foi aprovada em 4 de dezembro do ano ado, por meio da Resolução GMC nº 28/24.

Depois da mudança no regulamento do bloco econômico, o diretor-presidente interino da Anvisa, Rômison Mota, pautou para a reunião da Diretoria Colegiada, de 5 de fevereiro deste ano, a votação da minuta que liberou o Bisfenol F em latas de bebidas. 

A medida foi aprovada por unanimidade pelos três diretores presentes. Em seu voto pela liberação, Mota citou genericamente que, “após revisão das evidências”, a gerência técnica de alimentos concluiu que a medida contribui para a “inovação” em embalagens, pois “amplia o rol de alternativas tecnológicas à disposição do setor produtivo”.

A autorização da substância, no âmbito do Mercosul, foi aprovada em 4 de dezembro do ano ado, por meio da Resolução GMC nº 28/24Na resposta oficial encaminhada à Repórter Brasil, a Anvisa afirmou que a decisão de liberar o BPF levou em consideração “estudos e dados apresentados pela empresa fabricante no peticionamento, além da aprovação anterior por autoridades regulatórias estrangeiras e do consenso alcançado entre os Estados-Membros do Mercosul”.

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